REDES- Revista hispana para el análisis de redes sociales
Vol.12,#1, Junio 2007
http://revista-redes.rediris.es

 

Apresentação do monográfico

 

Marta Pedro Varanda - ISEG/UTL e SOCIUS, Lisboa (Portugal)[1]

 

 

O conceito de participação social que foi tema do nº anterior da revista REDES continua a ser a questão de base analisada neste número. A diferença é que este número é mais direccionado para a participação efectuada através de organizações da sociedade civil, também designadas como organizações da economia social, do terceiro sector, do sector não lucrativo, ONGs, entre outras. Dado o crescimento deste sector -grandemente impulsionado pelo Estado, através do incentivo à constituição de parcerias com o próprio Estado, mas também com o sector privado (mercado)- uma adequada análise ou avaliação do seu trabalho e do impacto na sociedade, não pode prescindir da análise de redes sociais (ARS). Esta não é no entanto uma ferramenta amplamente adoptada pelos estudiosos deste tema. Espera-se que os contributos deste monográfico abram caminho, e sirvam de exemplo, do quanto é revelador uma análise que inclua o enfoque de redes sociais. Já para aqueles que vêm no sector uma alternativa ao sistema capitalista neo-liberal, e que não advogam o seu papel enquanto um terceiro sector da sociedade, ao lado do Estado e do mercado –preferindo mesmo a designação de economia social– o interesse não será tanto o de discernir as redes de relações entre a economia social com o Estado e o mercado, mas sim as redes de relações inter organizacionais no cerne da economia social, cuja força resultante de uma acção bem coordenada, se deseja ter como resultado uma economia mais humana, cujo desenvolvimento seja realmente sustentável.

Neste número especial ambos os enfoques são explorados, e como resultado da análise são formulados os problemas, as limitações, as dificuldades, mas também as oportunidades que surgem a partir de ambas as formas de estar do sector. Dada uma posição de inferioridade do terceiro sector em relação aos outros dois (inferioridade em função da escassez de recursos e logo da capacidade de execução, mas não da dimensão dos tarefas que tem em mãos nem dos objectivos que se propõe realizar), é natural que os artigos se direccionem mais para o diagnóstico e levantamento dos obstáculos que o terceiro sector enfrenta, do que para a análise do impacto do seu trabalho. Entretanto, urge demonstrar empiricamente e de forma rigorosa, que essa posição de inferioridade /dependência tem consequências negativas. As organizações da sociedade civil tendem a formatar-se às exigências das agendas públicas em vez de conceberem as suas próprias agendas e solicitarem apoios estatais e privados para as concretizar. Isto porque as organizações da sociedade civil em interacção, como diz Gabriel Cuartas neste número, “muchas veces construyen desarollo desde visones particulares, distintas a las de los próprios gobiernos locales. Esto implica que la participacion [pode ser vista ] (…) como un proceso social del cual pueden surgir diversas alternativas que pueden chocar com las mismas politicas publicas o potenciarlas“ (p.4).

Pensamos no entanto que um diagnóstico da situação, em que é descrita a estrutura da rede de relações e os recursos que a atravessam, constitui um grande avanço do conhecimento até agora existente sobre o sector. Nem se pode considerar que a falta de análise do impacto seja uma lacuna a apontar, sabendo-se que essa analise de impacto será sempre uma das grandes debilidades da intervenção no social, sejam quais forem os actores intervenientes, cuja medição é de uma complexidade extrema, e por isso sempre sujeita a avaliações muito díspares. Para além desta, outra dificuldade que a avaliação do impacto do trabalho do terceiro sector não poderá deixar de enfrentar é que os resultados do seu trabalho serão, sempre e só, passíveis de avaliação no longo prazo, algo que não se insere bem nas agendas políticas dos governos.

Este monográfico traz também como valor acrescentado um olhar mais rigoroso e mais sistemático, logo mais esclarecedor, sobre a sociedade civil. Um conceito que tem servido para tudo (e como tal, em termos de investigação empírica, serve para pouco) é aqui olhado sem subterfúgios, não como uma figura de estilo mas como uma realidade concreta composta por organizações (resultantes em muitos casos de movimentos sociais) que desempenham determinadas tarefas, que têm objectivos diversos, dinâmicas de funcionamento diferentes, etc. Como dizem Lavalle et al. neste número “(..) malgrado, e em boa medida graças a semelhante sucesso, sabe-se surpreendentemente pouco acerca do modus operandi das organizações civis reais (…)”. Ou seja elas são vítimas do seu sucesso, sucesso entendido como o constante apelo dos políticos para que “democratizem a democracia” (Cohen e Arato, 1995, in Lavalle et al., 2007). Um apelo que por um lado revela um genuíno interesse de aproximação do Estado aos cidadãos, mas que por outro lado é uma saída fácil e conveniente para aquilo que o Estado não é capaz de fazer e que “sub-contrata” a bom preço, desvinculando-se de responsabilidades.

Um outro tema que é focado neste número, por Leonardo Gonzalez, tem a ver com a crescente utilização da sociedade civil como um instrumento ou meio para a implementação de políticas públicas (já que o seu papel na concepção dessas mesmas políticas tem sido secundaríssimo). Para conceber e implementar políticas públicas eficazes é necessário um conhecimento aprofundado, rigoroso da realidade sobre a qual se pretende intervir. É aqui que acreditamos que a análise de redes sociais pode ter um papel muito importante. Se as políticas públicas têm falhado é em grande parte por um deficiente conhecimento da realidade. Não nos referimos aqui às questões técnicas e económicas dos problemas, essas “relativamente” fáceis de compreender, mas sim às capacidades e recursos existentes no sistema social, os padrões de interacção, os investimentos relacionais que são postos em prática para resolver os problemas concretos das populações (Crozier e Friedberg, 1977).

Os passos dados pela investigação aqui apresentada, por pequenos que sejam, são úteis para uma concepção estratégica mais sólida do trabalho das organizações da sociedade civil, entre si, ou em parceria com o sector público e/ou privado. Todos os artigos apresentados, à excepção de um, focam directamente a questão das relações entre organizações da sociedade civil, três deles com enfoque no local e um com enfoque no global. O artigo que resta, o de Breno Fontes, também se interessa pelas relações entre organizações do sector não lucrativo mas neste caso fá-lo de forma indirecta, através do circuito percorrido pelo seus “operadores” chamando a atenção para a influência da sua rede de relações pessoais (e os seus vínculos organizacionais) nesse percurso. Estes autores reconhecem a importância de uma rede de cooperação sólida entre organizações do sector para que o seu trabalho tenha impacto, seja qual for a área do social, mas mais que tudo, para que tenha impacto na dinâmica da sociedade. Vários referem os efeitos que a relação do terceiro sector com os outros sectores dominantes na sociedade actual –Estado e fundamentalmente mercado, e um Estado cada vez mais formatado pelo mercado– tem no funcionamento do terceiro sector, que cada vez mais envereda por uma lógica semelhante à do mercado, pervertendo a lógica de solidariedade, desenvolvimento do ser humano que estava no cerne da sua actuação.

As diferentes contribuições aqui presentes para um olhar do terceiro sector/economia social do ponto de vista da análise de redes sociais, são, em resumo, as seguintes:

Breno Augusto Fontes descreve e analisa papel das redes sociais nos mecanismos de recrutamento dos operadores de ONGs e nas suas trajectórias organizacionais na área da educação da Região Metropolitana do Recife (Brasil). Nos campos de sociabilidade destes operadores de ONGs têm especial importância os círculos sociais religiosos e dos partidos que o autor considera como sendo “relés sociais” que activam a sua inserção nas ONGs. O artigo de Fontes é um exemplo do  valor acrescentado da ARS, pois uma questão que antes eram analisada “apenas de forma intuitiva é agora passível de ser formalizada empiricamente em protocolos de pesquisa mais precisos, mais fiáveis” (p. 23).

Cristina Maneschy e Alden Klovdahl descrevem as redes de associações de grupos camponeses do Nordeste do Estado de Pará (Brasil) e analisam os obstáculos à acção colectiva destas organizações. Eles notam que a proliferação recente das associações, que visam melhorar o acesso a recursos de grupos desfavorecidos, é em grande parte impulsionada por programas públicos com incentivos financeiros. Através da análise da rede de relações e da informação qualitativa obtida através de entrevistas, os autores conseguem ilustrar a dificuldade de superação das dificuldades enraizadas no sistema organizacional em estudo, o que impede uma democracia verdadeiramente participativa nos municípios em estudo. Com a ajuda da ARS verificou-se que as redes de relações existentes não eram suficientes para um acesso generalizado aos recursos, havendo barreiras concretas tais como as dificuldades de comunicação e mobilidade dos dirigentes. E também que as associações constituídas, longe de constituírem parceiros do estado ao nível local, mantinham uma relação clientelística, sendo simples recipientes de “favores” em forma de vários tipos de financiamento. A rede de contactos não era rede de acesso a oportunidades mas de reprodução de desigualdades. Com base no conhecimento da estrutura da rede de relações os autores apontam pistas para a superação destas fragilidades.

Gabriel Cuartas com base em dois estudos de caso das relações entre as organizações da sociedade civil de Medellin (Colômbia) faz uma reflexão sobre as tendências em curso no âmbito do terceiro sector, que define como sendo territorialização/tematização, autonomia/heteronomia e articulação/fragmentação. No que respeita as duas tendências territorialização/tematização, denota a existência de falta de articulação entre elas, que implicam “encuentros o desencuentros fortuitos, no planeados” (p.12). Relativamente à autonomia/heteronomia menciona a questão do financiamento, muito mais direccionado paras os problemas temáticos do que para os de desenvolvimento local. Gera-se assim uma clivagem entre as organizações temáticas profissionalizadas e as organizações de desenvolvimento local com estruturas frágeis dependentes da boa vontade dos seus voluntários. Níveis de financiamento diferentes têm como resultado uma autonomia diferente, que leva a dinâmicas de funcionamento diferentes, umas, que tendo recursos prestam serviços, outras, com menos recursos, que desenvolvem as capacidades organizativas locais. Ainda sobre a questão do financiamento chama a tenção para as múltiplas fontes de financiamento a que as ONG’s têm acesso, permitindo assim uma independência relativamente ao Estado. Mostra no entanto através da ARS, que esta multiplicidade de fontes funciona de forma desarticulada, sem propostas integradas para o local, levando a desperdício de recursos. Finalmente, tendências de articulação/ fragmentação têm a ver com proliferação de entidades –da sociedade civil e estatais- que têm como objecto problemas sociais semelhantes, e que para se articularem, mantendo alguma liberdade de actuação têm que conceber mecanismos complexos de coordenação.

Adrian Lavalle, Graziela Castello, e Renata Bichir fazem um estudo descritivo das organizações da sociedade civil da cidade de S. Paulo (Brasil) onde, através do mapeamento das suas interacções, revelam uma estrutura hierárquica em que surge com maior preponderância um novo tipo de organizações, as “articuladoras”. Alguns dos resultados que obtiveram não têm sido focados na literatura sobre o tema, por exemplo o surgimento das organizações articuladoras que têm sido normalmente apelidadas de ONG’s mas diferem significativamente delas. As “articuladoras” são um “produto notável de uma estratégia bem sucedida de criação de actores que reflecte o adensamento e a diferenciação funcional do universo das organizações civis”. O crescente papel das “articuladoras” tem a ver com o crescimento de interesse das organizações do sector em aumentar a sua escala de actuação, ou seja aponta para mudanças importantes na lógica da acção colectiva, que não foram até agora alvo de estudo.

Ainda com base no texto de Lavalle, Castello e Bichir, aproveitamos para chamar a atenção para a importância da definição precisa dos conceitos. Neste estudo os autores notam que as organizações populares, organizações formadas a partir dos movimentos populares dos anos 70/80, que são as mais centrais neste caso, têm suscitado pouco interesse pois a designação entrou em desuso. Isto para chamar a atenção que conceitos que abraçam realidades sociais díspares, como o conceito lato de ONG’s, não nos ajudam a compreender a realidade social com rigor. A falta de coerência nos conceitos utilizados pelos investigadores deste sector são uma das debilidades com que se confronta, pois, por exemplo, impossibilita o conhecimento da sua real dimensão e do peso que tem na economia. Esforços para a uniformização tem sido liderados pelos investigadores do Estudo Comparativo da Sociedade Civil da Universidade de John Hopkins, nos EUA.

Leonardo Gonzalez faz uma descrição das redes de colaboração entre as organizações civis na localidade de Ciudad Bolivar, na cidade de Bogotá (Colômbia) e aponta dados importantes relativos à estrutura e composição destas redes cujo conhecimento é fundamental para a concepção de politicas publicas para cidade. Ele chama atenção por exemplo para facto que as redes de organizações da sociedade civil são frágeis, de baixa densidade, correndo o risco de desaparecer com facilidade. Aqui a ARS é tomada como ferramenta potencial para a formulação, gestão e avaliação de politicas publicas, que ajuda a delinear estratégias de melhoramento da coordenação interinstitucional.

Nota também que nas redes que integram organizações não lucrativas e organizações públicas, são estas que têm sempre maior preponderância desvirtuando uma verdadeira parceria, de colaboração inter-pares. Algumas das dinâmicas de transformação verificadas na sociedade civil devem-se a um ajustamento às exigências da agenda politica e suas agências públicas.

Hagai Katz consegue reunir 10,001 Organizações não governamentais internacionais para testar o papel da sociedade civil global enquanto movimento de resistência contra a hegemonia do modelo capitalista neo-liberal , ou pelo contrário enquanto movimento cooptado pelo status quo económico e político global. Dado que os resultados apoiam parcialmente ambas as previsões o autor considera que a sociedade civil global está actualmente numa fase de transição, mas que a infra-estrutura actual poder vir a permitir o desenvolvimento de um bloco contra- hegemónico, se o peso do das organizações do Norte vier a diminuir.

Referencias

Cohen, J. e Arato, A., (1995). Sociedad civil y teoría política. México: Fondo de Cultura Económica.

Crozier, M. e Friedberg, E. (1977). L'Acteur et le Système. Éditions du Seuil.

 



[1] Para correspondência: marta@iseg.utl.pt